A mulher Automática - Oswald de Andrade


A MULHER AUTOMÁTICA

OSWALD DE ANDRADE




(De São Paulo)  Qual é o seu cargo?

 Esteno-dáctilo-serpente-contralto-secretária...

 Isso é novidade. Eu ouvi no rádio, naquele debate sobre a mulher moderna: esteno-dáctilo-serpente-secretária - A mulher atual!

 Ainda tem mais! Ponha glamour!

 Que é isso?

 Glamour é assim como eu sou. De concurso!

O homem pálido que esperava há duas horas examinou com os olhos a morena iodada no coral solto do vestido, sandálias de purpurina, cabelo lustroso, brincos, balangandãs e pulseiras, um beiço em ciclâmen por Salvador Dali.

 O senhor sabe? Comprei ontem um leque que cheira. É formidável! Da América!

A voz grossa trauteou La vie en rose.


 Dei o fora no meu darling porque ele não me levou à boîte para ver o Charles Trenet. Fui com Mister Ubirajara.

 Quem é Mister Ubirajara?

 Acho que é canadense. Um gordo do anúncio. Tem gaita e possui um guarda-roupa perfeito. Dois ternos por dia! Me levou a Santo Amaro num 1950 formidável. Tomamos muitos drinks.
Na ante-sala de móveis mecânicos o telefone ressou.

 Aposto que é o turco! Deixa tocar... Ele fala "negócio". Quer saber do "negócio" dele. Como se eu estivesse aqui para dar informações!

O telefone insiste.
 O senhor sabe? Um marinheiro contrabandista foi ao meu apartamento levar uns cortes de tropical e uns relógios suíços. Não falava nenhuma língua. Disse por gestos que era marinheiro, da Suíça. Enquanto ele se distraiu bati um relógio-pulseira e pus ele pra fora. Começou gesticulando que faltava alguma coisa. Banquei a boba. O homem falou baiano: - Deixe de besteira moça! Não gosto disso não! Me dá o relógio!

O telefone continuava. Ela arrancou num gesto o fone e berrou:

 Não me encha! Não é aqui!

Desligou violentamente. A voz do outro lado ficou dizendo humildemente:

 Esbéra, mucinha!

 Que esbéra, nada! Se ele ligar outra vez dou o telefone do Cemitério do Araçá. Vou fazer ele falar com defunto!

Houve um silêncio rápido. O homem pálido perguntou:

 A senhora é contralto?

 Sou. O que a mulher tem de melhor é a voz! - gritou desaparendo numa porta volante.  A voz e a saliva!

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