O câmbio e as pompas - Machado de Assis
O CÂMBIO E AS POMBAS
MACHADO DE ASSIS
Contrastes da vida, que são as obras de imaginação ao pé de vós!
Vinha eu de um banco, aonde fora saber notícias do câmbio. Não tenho relações diretas com o câmbio; não saco sobre Londres, nem sobre qualquer outro ponto da terra, que é assaz vasta, e eu demasiado pequeno. Mas tudo o que compro caro, dizem-me que é culpa de câmbio. “Que quer o senhor que eu faça com este câmbio a 9?”, perguntam-me. Em vão leio os jornais; o câmbio não sobe de 9. O que faz é variar; ora é 9 1/8, ora 9 1/4, ora 9 1/2. Um eterno vaivém na mesma eterna casa. Sucedeu o que se dá com tudo; habituei-me a esta triste especulação de 9, e dei de mão a todas as esperanças de ver o câmbio a 10.
De repente, ouço dizer na rua que o câmbio baixaria à casa dos 8. A princípio não acreditei; era uma invenção de maus gosto para assusta a gente, ou algum inimigo achara aquele meio de fazer mal. Mas tanto me repetiram a notícia, que resolvi ir às casas argentárias saber se realmente o câmbio descera a 8. Em caminho quis calcular o preço das calças e do pão, mas não achei nada, vi só que seria mais caro. Entrei no primeiro banco, à mão, e até agora não sei qual foi. Gente bastante: todos os olhos fitavam as tabelas. Vi um 8, acompanhado de pequenos algarismos, que a cegueira da comoção não me permitiu discernir. Que me importavam estes? Um quarto, um oitavo, três oitavos, tudo me era indiferente, uma vez que o fatal número 8 lá estava. Esse algarismo, que eu presumia nunca ver nas tabelas cambiais, ali me pareceu com os seus dous círculos, um por cima do outro. Pareceu-me um par de olhos tortos e irônicos.
Perguntei a um desconhecido se era verdade. Respondeu-me que era verdade. Quanto à causa, quando lhe perguntei por ela, respondeu-me com aquele gesto de ignorância, que consiste em fazer cair os cantos da boca. Se bem me lembro, acrescentou o gesto de abrir os braços com as mãos espalmadas, que é a mesma ignorância em itálico. Compreendi que não sabia a causa; mas o efeito ali estava, e todos os olhos em cima dele, sem a consternação nem o terror que deivam ter os meus. Saí; na Rua da Alfândega, esquina da Candelária, havia alguma agitação, certo burburinho, mas não pude colher mais do que já sabia, isto é, que o câmbio baixara a 8. Um perverso, vendo-me apavorado, assegurava a outro que a queda a 7 não era impossível. Quis ir ao meu alfaiate para que me reduzisse a nova tabela ao preço que teria de pagar pelas calças, mas é certo que ninguém se apressa em receber uma notícia má. Que pode suceder?, disse comigo; chegarmos à arozóia; será a restauração da nossa idade pré-histórica, e um caminho para o Éden, avant la lettre.
Enquanto seguia na direção da Rua Primeiro de Março, ouvia falar do câmbio. Quase a dobrar a esquina, um homem lia a outro as cotações dos fundos. Tinham-se vendido ações do Banco Emissor de Pernambuco a mil e quinhentos; as debêntures da Leopoldina chegaram a obter seis mil setecentos e cinquenta; das ações da Melhoramentos do Maranhão havia ofertas a quatro mil e quinhentos, mas ninguém lhes pegava. Dobrei a esquina, entrei na Rua Primeiro de Março, em direção aos Carceler. Ia costeando as vitrinas de cambistas, cheias de outro, muita libra, muito franco, muito dólar, tudo empilhado, esperando os fregueses. Vinha de dentro um fedor judaico de entontecer, mas a vida das libras restituía o equilíbrio ao cérebro, e fazia-me para, mirar, cobiçar...
— Vamos!, exclamei, olhando para o céu.
Que vi, então, leitor amigo? Na igreja da Cruz dos Militares, dentro do nicho de S. João, estavam três pombas. Uma pousava na cabeça do apóstolo, outra na cabeça da águia, outra no livro aberto. Esta parecia ler, mas não lia, porque abriu logo as asas e trepou à cabeça do apóstolo, desceu à cabeça da águia, e a que estava na cabeça da águia passou ao livro. Uma quarta pomba veio ter com elas. Então começaram todas a subir e a descer, ora parando por alguns segundos, e o santo quieto, deixando que elas lhe contornassem o pescoço e os emblemas, como se não tivesse outro ofício que esse de dar pouso às pombas.
Parei e disse comigo: Contrastes da vida, que são as obras da imaginação ao pé de vós? Nenhuma daquelas pombas pensa no câmbio, nem na baixa, nem no que ha de vestir, nem no que há de comer. Eis ali a verdadeira gente cristã, eis o sermão da montanha, a dous passos dos bancos, às próprias barbas destas casas de cambistas que me enchem de inveja. Talvez na alma de alguns destes homens viva ainda a própria alma de um antigo que ouviu o discurso de Jesus, e não trocou por este o Deus de Abrãao de Isaac e de Jacó. Cuida das libras como eu, que visto e me sustento pelo valor delas, mas eis aqui o que dizem as pombas, repetindo o sermão da montanha: “Não andeis cuidadosos da nossa vida, que comereis, nem para o vosso corpo, que vestireis... Olhas para as aves do céu, que não semeiam, nem segam, nem fazem provimentos nos celeiros; e contudo, vosso pai celestial as sustenta... E por que andais vós solícitos pelo vestido? Considerai como crescem os lírios do campo; eles não trabalham nem fiam... Não andeis inquietos pelo dia de amanhã. Porque o dia de amanhã a si mesmo trará o seu cuidado; ao de hoje basta a sua própria aflição”. [S. Mateus.]
Realmente, não cuidavam de nada aquelas pombas. Onde é o ninho delas? Perto ou longe, gostam de vir aqui à águia de Patmos. Alguma vez irão ao apóstolo do outro nicho, S. Pedro, creio; mas S. João é que as namora, neste dia de câmbio baixo, como para fazer contraste com a besta do Apocalipse, a famosa besta de sete cabeças e dez cornos, - número fatídico - talvez a tava do câmbio de amanhã [7/10].
Afinal deixei a contemplação das pombas e fui-me à farmácia, a um das fármacias que há naquela rua. Ia comprar um remédio; pediram-me por ele quantia grossa. Como eu estranhasse o preço, replicou-me o farmacêutico: "Mas, que quer o senhor que eu faça com este câmbio a 8?" Como ao grande Gama, arrepiaram-me as carnes e o cabelo, mas só de ouvi-lo. A vista era boa, serena, quase risonha. Quis raciocinar, mas raciocínio é uma cousa e medicamento é outra; saí de lá com o remédio e um acréscimo de quinhentos réis no preço. Contaram-me que já não há tostões nas farmácias, nem tostões, menos ainda vinténs. Tudo custa mil-réis ou mil e quinhentos, dous mil-réis ou dous mil e quinhentos, e assim por diante. Para a contalibidade é, realmente, mais fácil; e pode ser que o próprio enfermo ganhe com isso - a confiança, metade da cura.
Na rua tornei a erguer os olhos às pombas. Só vi uma, pousada no livro. Que tens tu?, perguntei-lhe cá de baixo, por um modo sugestivo. Se é a besta de sete cabeças, não te importes que venha, contanto que não lhe cortes nenhuma. Já temos a de oito: menos de sete cabeças é nada. Pagarei nove mil-réis pelo remédio, mas antes nove que catorze, no dia em que a besta ficar descabeçada, porque então o mais barato é o melhor de todos os remédios. E a pomba, pelo mesmo processo sugestivo:
— Que tenho eu com remédio, homem de pouca fé? O ar e o mato são as minhas boticas.
Quis pedir socorro ao apóstolo; mas o mármore, - ou a vista me engana, ou o apóstolo gosta das suas pombas amigas, - o mármore sorriu e não voltou a cara para não desmentir o estatuário. Sorriu, e a pomba saltou-lhe à cabeça, para lhe tirar comida, pagar, ou para lher dar um beijo.
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